sábado, 1 de dezembro de 2012

"eles não sabem quantos nôs somos''. Espetaculo do valete em Campo pequeno, Lisboa.

Noite de celebração do hip-hop português, no Campo Pequeno, em Lisboa, com Valete e convidados."Eles não sabem quantos nós somos!", disse o autor de Educação Visual, referindo-se à "família" do hip-hop.

Numa das muitas vezes em que se dirigiu ao público que, esta noite, deixou muito bem composto o Campo Pequeno, em Lisboa, Valete contou que, numa das entrevistas de promoção a este concerto, um entrevistador lhe tinha sugerido que,ao invés de usar a praça de touros, marcasse o espetáculo para uma sala de menores dimensões, como o Musicbox. Por detrás da proposta nãoestariam objeções de natureza ética, mas sim a probabilidade de o Campo Pequeno estar mais vazio do que cheio na hora de receber o rapper."Eles não sabem quantos nós somos!", concluiu, triunfante, o homem de Serviço Público , perante a plateia repleta que tinha à sua frente, elencando depois uma série de localidades e até de países onde, supõe-se, a força do hip-hop é grande.
A postura de "contra tudo e contra todos" (esta desconfiança/hostilidade da imprensa a que Valete já aludira no Sudoeste, em 2011, confessamos quenos escapa enquanto leitores) é adotada mais vezes ao longo do concerto de quase três horas: elogiando a abnegação de Adamastor, um dos MCs que o acompanha em palco, Valete lembra que o amigo está a braços com uma inflamação na garganta, mas capaz de enfrentar o palco, mesmo que vindo diretamente do hospital. Samora, um dos cantores convidados,é um talento que as editoras ("E sei que estão algumas presentes", revela) fazem mal em ignorar. E o hip-hop que Valete, revisitando a carreira mas também antecipando o vindouro Homo Libero , apresenta esta noite é "o verdadeiro", e não "o oxigenado, o aguado, de outros artistas por identificar.
Além das rimas que debita com a consciência exata do peso de cada palavra, e da segurança proporcionada por Adamastor e Bónus, Valete contou, esta sexta-feira, com a adesão do público à sua música, ao seu discurso e às suas posições: perto do final, o rapper pediu aos fãs que "não censurem" aqueles que, movidos pelo "fim do Estado Social", começarem a tomar medidas marcadas pelo desespero,"como o reformado que descontou toda a vida ou o pai de família sem dinheiro para pagar uma operação que lhe pode salvar a vida". Pouco mais tarde, e numa altura em que já anunciara a despedida ("Estão a mandar-nos embora!"), Keidje Lima, de seu verdadeiro nome, regressou, acompanhado da sua trupe, para rimar sobre manifestações e cocktails molotof, com imagens de Ghandi, Martin Luther King, Bob Marley ou Julian Assange na tela onde foram sendo projetados pequenos filmes. Apesar da mistura eclética de personagens, ou talvez por causa dela, a reação do público foi de euforia, fazendo com que o concerto terminasse em alta.
Foi pelas 23h15 que Valete surgiu em palco, com um aparato cénico (projeções, jogo de luzes) com que osartistas da primeira parte, naturalmente, não tinham contado."Quero mais energia nesta merda!", exclama o rapper, interrompendo a primeira canção para retomá-la, ainda com mais raiva e empenho. A"Subúrbios", de Serviço Público , seguiu-se "Serial Killer", da estreia Educação Visual : uma metáfora bem conseguida sobre as drogas duras, e"À Noite", do mesmo disco. Na tela iam passando imagens, urbanas como a sua música, e ao palco subiam cantores convidados (Nuno Lopes impressionou na nova "O Meu País", Orlando Santos ficou sozinho em palco com "Since You've Been Gone", dos Orelha Negra) e também uma violinista, convidados que Valete apresenta invariavelmente com o predicado "sério". "Já perceberam porque é que o Homo Libero está a demorar tanto?", indaga após interpretar uma canção do próximo disco. "É porque é música séria!"

"Os Melhores Anos", ode à adolescência com a participação de Jimmy P, "soldado" que cantou de braço partido ( "Ser adulto é foda, não corras para chegar cá" ), a balada "Mulher que Deus Amou" ou"Melhor Rima de Sempre", épico de dez minutos sobre o percurso do músico enquanto amante e criador de hip-hop, foram outros dos temas mais bem recebidos por um público ao rubro. "Canal 115", com as suas tiradas ("e bombas nucleares") para"esses MCs populares", e a muito atual "Meu País", com menções à crise e à emigração e um belo vídeo a ser projetado na tela, provam ainda a capacidade narrativa e crítica de Valete, que a certa altura chamou ao palco o amigo Sam The Kid. "Comigo nesta batalha desde 1997!", apresentou, antes de o rapper de Chelas incendiar, com a sua entrega extremamente contundente, o Campo Pequeno."Presta Atenção" e "Poetas do Karaoke", da sua lavra, serviram de pilar inesperado desta noite de celebração do hip-hop nacional.
Depois de alguma perda de ritmo, natural num espetáculo tão longo,"Mulheres da Minha Vida" e "Roleta Russa", dois dos temas de maior intensidade emocional do repertório de Valete, conduziram o espetáculo àporta de saída, não sem antes a estrela da noite, acompanhada pela sua equipa e pelos convidados (entreos quais Xeg, que a par de Regula atou na primeira parte), alertar para a delapidação do Estado Social."Quando não há justiça, sobra o desespero", ouviu-se nos minutos finais de uma noite vitoriosa, de festa mas também de crítica e contestação.

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